quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Acorrentados.

Pausa para pensar:

"Quem coleciona selos para o filho do amigo; quem acorda de madrugada e estremece no desgosto de si mesmo ao lembrar que há muitos anos feriu alguém que amava; quem chora no cinema ao ver o reencontro de pai e filho; quem segura sem temos uma lagartixa e lhe faz com os dedos uma carícia; quem se detém no caminho para ver melhor a flor silvestre; quem se ri das próprias rugas; quem se decide aplicar-se ao estudo de uma língua morta depois de um fracasso sentimental; quem procura na cidade os traços da cidade que passou; quem se deixa tocar pelo símbolo da porta fechada; quem costura roupa para os lázaros; quem envia boneca às filhas dos lázaros; quem diz a uma visita pouco familiar: Meu pai só gostava dessa cadeira; quem manda livros aos presidiários; quem se comove ao ver passar de cabeça branca aquele ou aquela, mestre ou mestra, que foi a fera do colégio; quem escolha na venda verdura fresca para o canário; quem se lembra todos os dias do amigo morto; quem jamais negligencia os ritos da amizade; quem guarda, se lhe derem de presente, um isqueiro que não mais funciona; quem, não tendo o hábito de beber, liga o telefone internacional no segundo uísque a fim de conversar com amigo ou amiga; quem coleciona pedras, garrafas, galhos ressequidos; quem passa mais de dez minutos a fazer mágica para as crianças; quem guarda as cartas do noivado com uma fita; quem sabe construir uma boa fogueira; quem entra em delicado transe diante dos velhos troncos, dos musgos e dos liquens; quem procura decifrar no desenho da madeira o hieróglifo da existência; quem não se acanha de achar o pôr-do-sol uma perfeição; quem se desata em sorriso à visão de uma cascata; quem leva a sério os transatlânticos que passam; quem visita sozinho os lugares onde já foi feliz ou infeliz; quem de repente liberta os pássaros do viveiro; quem sente pena da pessoa amada e não sabe explicar o motivo; quem julga adivinhar o pensamento do cavalo; todos eles são presidiários da ternura e andarão por toda parte acorrentados, atados aos pequenos amores da armadilha terrestre."

(O Anjo Bêbado, págs. 1O5 e 1O6;
Paulo Mendes Campos)


Não sei, apenas me deu vontade de postar esse texto aqui, sabe? Ele traz tantas coisas, lembranças talvez. Não são todas, que quase nenhuma, as pessoas que se encaixam nesse texto. Muitas podem dizer "sim" a algumas das perguntas, outras podem rir e pensar que nunca, em lugar algum, ninguém faria a metade, ou uma das coisas, que estão descritas acima. E isso não é culpa dessas pessoas. Os acorrentados à ternura e ao amor são pessoas que conseguem livrar-se das garras do comodismo indidualista, cujo ninguém mais é ensinado a pensar no próximo. Sim, pois esse comodismo é inserido culturalmente em nós desde que nascemos e poucas são as pessoas que percebem o quão ruim é isso. O quão estúpido é. Poucas pessoas sabem amar hoje em dia. Poucas pessoas sabem o verdadeiro significado da palavra amor e, principalmente, sabem distingui-la de sinônimos fajutos. Pena que são poucas pessoas, pena.